quarta-feira, 8 de março de 2023

Jonathas de Andrade Museu do homem do nordeste

Gosto da palavra «intimidade». Há algo no ritmo do jogo entre o in-ti-mi, o dentro, o fora e o dentro, mais uma vez, que desperta uma sensação qualquer de mistério, de dança, de mar. Para além da sua poesia, a volta ao «íntimo», enquanto rubrica teórico-analítica, representa também um apelo especial: a rigor, a intimidade não se deixa limitar às categorias de afeto e de cuidado que herdamos social, política e economicamente [1]. Como água, corre por entre os dedos que apontam impetuosamente para a pátria, a identidade e a família, molhando tantos mais seres, coisas e relações quanto podem imaginar o desejo.

Em olho–faísca, a primeira exposição monográfica de Jonathas de Andrade (Maceió, 1982) em Portugal, respinga-nos este desejo libertário que circula anónimo, invisível, clandestino. Seja nos subterrâneos de um clube de elite em Alagoas, de um governo ultraconservador ou de uma narrativa antropológica historicamente romanceada, as geografias do querer encontram espaço, tempo e corpo. No caso desta mostra, curada por João Mourão e Luís Silva, o corpo masculino – que, embora sempre mais ou menos presente nas obras do artista brasileiro, ganha, aqui, uma centralidade inédita.

Madrugada não voltou /

Os caminhos abrem-se na Central Tejo, no MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, a partir de um painel de 20 fotografias de jovens jordanianos, dentre os quais está Cristo. Procurando Jesus (2013) já indica a tentativa – muito bem conseguida – de Jonathas de Andrade nesta exposição: tensionar os elementos que compõem a nossa frágil, embora há muito resistente e estática, ideia de homem, de homens e, é claro, do Homem. Diante destas duas dezenas de faces e posturas, votamos com o caroço de uma tâmara na urna correspondente ao novo Jesus, sem pele, cabelo ou olhos claros. A proposta está feita: como num plebiscito, a definição do masculino está aberta e sujeita à desconstrução e reconstrução popular.

E, de facto, se traçarmos o nosso percurso pelo lado direito, confrontar-nos-emos imediatamente com referências claras a este homem construtor e em construção. Na mesma sala, 2 em 1 (2010) apresenta um guia didático para a transformação de duas camas de solteiro numa cama de casal, e Suar a Camisa (2014) reúne uma extensa coleção de uniformes de trabalho, marcas metonímicas de 120 homens e os seus esforços diários, efémera e eternamente conservados naquelas camisolas gastas, sujas, mal cheirosas.

Dois amantes em busca de um leito ou uma multidão em busca de dignidade laboral logram redesenhar os gestos, as imagens e os vocabulários do íntimo e do público, inventam e viabilizam uma narrativa para o próprio amor e para todo um país – impossível não fazer menção às mensagens políticas estampadas em algumas das roupas, com fotografias de Lula e de Dilma, cujo peso torna-se ainda mais forte e especial após a reeleição presidencial do Partido dos Trabalhadores no Brasil, o qual se deve, maioritariamente, aos votos da região Nordeste, onde Jonathas de Andrade é nascido e vive.


O marinheiro bonito /

Se é verdade que o Nordeste e os seus símbolos servem de vitrine para uma certa brasilidade forjada político-literariamente desde a década de 1920, com Gilberto Freyre [2], em 2023, a questão de uma identidade nordestina volta à pauta. Não à toa, o berço do carnaval institucional do Rio de Janeiro convida ao centro da cidade, em fevereiro desse ano, figuras como Lampião [3] e Mestre Vitalino [4]. Nos desfiles da Sapucaí, quatro escolas de samba elegem a região brasileira como o tema dos seus enredos. No contexto do mais recente cenário eleitoral – que revelou, mais uma vez, a clara demarcação ideológica e social entre o norte e o sul do país –, faz-se urgente ultrapassar as hostilidades racistas, preconceituosas e, até, separatistas, para retomar as rédeas das narrativas nordestinas.

E assim o faz Jonathas de Andrade, com uma atenção profunda e um olhar-faísca apurado e generoso para com aquilo e aqueles que estão à sua volta, mais ou menos expostos à vista geral. Continuando o trajeto até à segunda sala, deparamo-nos com um conjunto de cuecas masculinas, um álbum fotográfico suspenso e um filme que, em diálogo, nos despertam, novamente, para a possibilidade criativa de conjurarmos novas – ou velhas – tradições e cosmovisões.

Na primeira peça – produzida especialmente para a exposição, da qual é homónima –, mais um exemplar da estratégia arquivística do artista, 68 roupas íntimas, embaladas a vácuo, tecem uma espécie de retrato escultórico dos parceiros com os quais de Andrade se relacionou ao longo da vida. No contraste entre as marcas e os enunciados gravados nas cuecas – «radical», «xtreme», «sports», «Mercedes» – e a vulnerabilidade que ali se insinua, vêm à tona importantes questionamentos acerca da artificialidade do viril e do frágil. Que outros slogans poderiam vestir aqueles homens, na sua inteira e erótica complexidade de pessoa?

A pergunta ressoa através dos rostos nos Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste (2013), capturados na expressão única e extraordinária de um ser, que recusa a conceitualização e a tematização de si como modelo de uma totalidade esmagadora e violentamente impessoal. Na sua ambiguidade individual, resistindo a qualquer empreendimento etnográfico, faz transparecer o desejo infinito do corpo, atravessado no olhar que fita a câmera e responde à proposta do fotógrafo. Lembro-me da máxima de Deleuze: «There is only desire and the social, and nothing else» [5].

Sereia do mar levou /

«The social», conforme explicita Jonathas de Andrade, não se refere apenas à relação entre homens, entre homens e mulheres, entre humanos. Na vivência histórica nordestina – ou será, também, uma memória fincada nas entranhas brasileiras, latino-americanas? –, mar, areia, cavalo, peixe, boi, sol, chuva também são agentes com os quais se cultiva intimidade. Obras como O Levante (2013-2014), Maré (2014) e O Peixe (2016) têm o mérito de escavar de volta à superfície, num terreno fértil de realidade e de ficção, a poética do viver e morrer bem, em convívio.

Utopia com fantasia, concretude e nostalgia, a dança entre o corpo masculino, o corpo animal e o corpo líquido é repleta de beleza e violência – repleta de prazer. Os peixes que agonizam em cena tentam o seu último suspiro e, na foz do Rio São Francisco, desaguam a própria vida nos braços musculosos, ternos e dourados dos seus malfeitores. De uma força estética enorme, capaz de transbordar no espectador lágrimas, sorrisos ou repulsa, o filme oscila entre o belo e o assustador. Como o mar de Dorival Caymmi, autor dos intemporais versos que cadenciam estes humildes parágrafos, há algo no trabalho de Jonathas de Andrade que cifra o destino de toda uma comunidade: a sua comunidade, sedutora e indomável.


É doce morrer.

 

olho–faísca, de Jonathas de Andrade, está patente no MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (Central) até 30 de abril de 2023.

 


































https://cargocollective.com/jonathasdeandrade/museu-do-homem-do-nordeste



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