Gosto da
palavra «intimidade». Há algo no ritmo do jogo entre o in-ti-mi, o dentro, o
fora e o dentro, mais uma vez, que desperta uma sensação qualquer de mistério,
de dança, de mar. Para além da sua poesia, a volta ao «íntimo», enquanto
rubrica teórico-analítica, representa também um apelo especial: a rigor, a
intimidade não se deixa limitar às categorias de afeto e de cuidado que
herdamos social, política e economicamente [1]. Como água, corre por entre os
dedos que apontam impetuosamente para a pátria, a identidade e a família,
molhando tantos mais seres, coisas e relações quanto podem imaginar o desejo.
Em olho–faísca, a primeira
exposição monográfica de Jonathas de Andrade (Maceió, 1982) em Portugal,
respinga-nos este desejo libertário que circula anónimo, invisível,
clandestino. Seja nos subterrâneos de um clube de elite em Alagoas, de um
governo ultraconservador ou de uma narrativa antropológica historicamente
romanceada, as geografias do querer encontram espaço, tempo e corpo. No caso
desta mostra, curada por João Mourão e Luís Silva, o corpo masculino – que,
embora sempre mais ou menos presente nas obras do artista brasileiro, ganha,
aqui, uma centralidade inédita.
Madrugada não voltou /
Os caminhos abrem-se na Central Tejo, no MAAT – Museu de Arte,
Arquitetura e Tecnologia, a partir de um painel de 20 fotografias de jovens
jordanianos, dentre os quais está Cristo. Procurando Jesus (2013) já indica a tentativa –
muito bem conseguida – de Jonathas de Andrade nesta exposição: tensionar os
elementos que compõem a nossa frágil, embora há muito resistente e estática,
ideia de homem, de homens e, é claro, do Homem. Diante destas duas dezenas de
faces e posturas, votamos com o caroço de uma tâmara na urna correspondente ao
novo Jesus, sem pele, cabelo ou olhos claros. A proposta está feita: como num
plebiscito, a definição do masculino está aberta e sujeita à desconstrução e
reconstrução popular.
E, de facto, se traçarmos o nosso percurso pelo lado direito,
confrontar-nos-emos imediatamente com referências claras a este homem
construtor e em construção. Na mesma sala, 2 em 1 (2010) apresenta um guia didático para a
transformação de duas camas de solteiro numa cama de casal, e Suar a Camisa (2014) reúne
uma extensa coleção de uniformes de trabalho, marcas metonímicas de 120 homens
e os seus esforços diários, efémera e eternamente conservados naquelas
camisolas gastas, sujas, mal cheirosas.
Dois amantes
em busca de um leito ou uma multidão em busca de dignidade laboral logram
redesenhar os gestos, as imagens e os vocabulários do íntimo e do público,
inventam e viabilizam uma narrativa para o próprio amor e para todo um país –
impossível não fazer menção às mensagens políticas estampadas em algumas das
roupas, com fotografias de Lula e de Dilma, cujo peso torna-se ainda mais forte
e especial após a reeleição presidencial do Partido dos Trabalhadores no
Brasil, o qual se deve, maioritariamente, aos votos da região Nordeste, onde
Jonathas de Andrade é nascido e vive.
O marinheiro bonito /
Se é verdade
que o Nordeste e os seus símbolos servem de vitrine para uma certa brasilidade
forjada político-literariamente desde a década de 1920, com Gilberto Freyre
[2], em 2023, a questão de uma identidade nordestina volta à pauta. Não à
toa, o berço do carnaval institucional do Rio de Janeiro convida ao centro da
cidade, em fevereiro desse ano, figuras como Lampião [3] e Mestre Vitalino [4].
Nos desfiles da Sapucaí, quatro escolas de samba elegem a região brasileira
como o tema dos seus enredos. No contexto do mais recente cenário eleitoral –
que revelou, mais uma vez, a clara demarcação ideológica e social entre o norte
e o sul do país –, faz-se urgente ultrapassar as hostilidades racistas,
preconceituosas e, até, separatistas, para retomar as rédeas das narrativas
nordestinas.
E assim o faz
Jonathas de Andrade, com uma atenção profunda e um olhar-faísca apurado e
generoso para com aquilo e aqueles que estão à sua volta, mais ou menos
expostos à vista geral. Continuando o trajeto até à segunda sala, deparamo-nos
com um conjunto de cuecas masculinas, um álbum fotográfico suspenso e um filme
que, em diálogo, nos despertam, novamente, para a possibilidade criativa de
conjurarmos novas – ou velhas – tradições e cosmovisões.
Na primeira peça – produzida especialmente para a exposição, da
qual é homónima –, mais um exemplar da estratégia arquivística do artista, 68
roupas íntimas, embaladas a vácuo, tecem uma espécie de retrato escultórico dos
parceiros com os quais de Andrade se relacionou ao longo da vida. No contraste
entre as marcas e os enunciados gravados nas cuecas – «radical», «xtreme», «sports», «Mercedes» – e a
vulnerabilidade que ali se insinua, vêm à tona importantes questionamentos
acerca da artificialidade do viril e do frágil. Que outros slogans poderiam
vestir aqueles homens, na sua inteira e erótica complexidade de pessoa?
A pergunta ressoa através dos rostos nos Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste (2013),
capturados na expressão única e extraordinária de um ser, que recusa a
conceitualização e a tematização de si como modelo de uma totalidade esmagadora
e violentamente impessoal. Na sua ambiguidade individual, resistindo a qualquer
empreendimento etnográfico, faz transparecer o desejo infinito do corpo,
atravessado no olhar que fita a câmera e responde à proposta do fotógrafo.
Lembro-me da máxima de Deleuze: «There
is only desire and the social, and nothing else» [5].
Sereia do mar levou /
«The social»,
conforme explicita Jonathas de Andrade, não se refere apenas à relação entre
homens, entre homens e mulheres, entre humanos. Na vivência histórica
nordestina – ou será, também, uma memória fincada nas entranhas brasileiras,
latino-americanas? –, mar, areia, cavalo, peixe, boi, sol, chuva também são
agentes com os quais se cultiva intimidade. Obras como O Levante (2013-2014), Maré (2014) e O Peixe (2016) têm o mérito
de escavar de volta à superfície, num terreno fértil de realidade e de ficção,
a poética do viver e morrer bem, em convívio.
Utopia com
fantasia, concretude e nostalgia, a dança entre o corpo masculino, o corpo
animal e o corpo líquido é repleta de beleza e violência – repleta de prazer.
Os peixes que agonizam em cena tentam o seu último suspiro e, na foz do Rio São
Francisco, desaguam a própria vida nos braços musculosos, ternos e dourados dos
seus malfeitores. De uma força estética enorme, capaz de transbordar no
espectador lágrimas, sorrisos ou repulsa, o filme oscila entre o belo e o
assustador. Como o mar de Dorival Caymmi, autor dos intemporais versos que
cadenciam estes humildes parágrafos, há algo no trabalho de Jonathas de Andrade
que cifra o destino de toda uma comunidade: a sua comunidade, sedutora e
indomável.
É doce morrer.
olho–faísca, de Jonathas de Andrade, está patente no MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (Central)
até 30 de abril de 2023.
https://cargocollective.com/jonathasdeandrade/museu-do-homem-do-nordeste
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